Um burlesco e satírico Fim dos Tempos
Benedito Nunes
Não tendes aqui uma história diretamente contada, seja em forma de drama ou de simples narração. A sua matéria, o Juízo Final, como a finalização do processo temporal gerador do humanamente histórico, já é o oposto a qualquer História. E se a execução de tal Juízo pudesse ser contada, isso se passaria nas alturas apocalípticas, onde tudo se vê simbólica, senão alegoricamente, a menos que a História se rebaixasse, e fosse, passando do sublime ao cômico, como nesta história que vos conta Flávio Sidrim Nassar, arrevesado acontecimento, o sagrado à altura do profano, esses dois planos alternados ou confundidos.
Os primeiros a efetuarem o rebaixamento e a produzirem o arrevesamento, de que resulta o golpe de humor das páginas seguintes, foram os discípulos de Sócrates denominados cínicos, a exemplo de Menipo. Dessa inversão humorística nascem dois efeitos: o primeiro é o do logro, do engano, do ludibrio (o Juízo final se municipaliza, Belém tomada como cidade exemplo da adaptação das virtudes cristãs nos trópicos, o Tribunal divino instalado nos altos do edifício Manuel Pinto da Silva), o que permite classificar o texto que se vai ler como burlesco, misturando drama e narração: o segundo é o judicativo, de escarmento moral e de condenação pública, próprio da sátira menipéia, em seu alcance de crítica política, isto é, crítica da Polis, exercida pela Cidade e que toma a Cidade por objeto. O burlesco, que pede o clima de comédia, é sempre risonho; a sátira, que é um ato social, coletivo; nunca é respeitosa, tal como respeitosos não eram os desaforados testamentos lidos nas vindicativas malhações dos antigos judas de nossa infância.
Não obstante pertencer à geração mais velha, quem este livro apresenta subscreve as condenações e penalidades prescritas no testamento de Belém, pelo seu autor, um membro da geração mais nova, contra todos aqueles que, desde há muito tempo e de diferentes modos, têm contribuído para descentrar, devastar, enxovalhar e desurbanizar a Cidade, hoje uma suburbana concentração da pobreza amazônica.
Belém, março 2000
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