domingo, 18 de setembro de 2011

Os italianos irmãos mais velhos dos brasileiros

OS ITALIANOS, IRMÃOS MAIS VELHOS DOS BRASILEIROS: DIÁLOGO SOBRE A    
IDENTIDADE AOS 150 ANOS DA ITÁLIA MODERNA
 
Paolo Spedicato (2011)
 
​A cultura católica e cristã em geral, sobre tudo em tempos de ecumenismo e de diálogo, tem o costume de chamar os judeus “irmãos mais velhos”, “fratelli maggiori”. Trata-se de uma manifestação de respeito pela primogenitura histórica e pela herança moral do antigo povo monoteísta, assim como protagonizadas e contadas pelo Antigo Testamento. Fora de metáfora, gosteria aqui de usar o mesmo paradigma, chamando os italianos de irmãos mais velhos dos brasileiros. Afinal, a península italiana tem quase três milênios de história documentada e o Brasil moderno é um jovem de somente quinhentos anos, embora muito mais velho em termos de pré-história antropológica e arqueológica. Mas sabemos que a história dos acontecimentos humanos é cheia de surpresas e paradoxos. É só pensar no caso do Brasil moderno, nascido do “brado retumbante” dos campos de Ipiranga em 1822, uma data que o faz mais velho da Itália unida moderna, cujo aniversario, a partir de 1861, este ano celebramos e recordamos.
​Mas porquê relembrar, celebrar uma data histórica, embora significativa para uma comunidade nacional? O poeta romântico Giacomo Leopardi, do ponto de vista do seu ‘sistema’ de pensamento materialista e pessimista, escreveu que as festas de aniversário, privadas ou públicas, representam “ilusões”positivas, momentos bonitos, sendo as ilusões os únicos elementos que podem dar valor a uma existência sombria e sem sentido. E o influente filósofo alemão Martin Heidegger entende a atividade filosófica como um “recordar-se”, ou pensar como um repensar o “ser” esquecido pela história da metafísica. Pois é: a memória é aquela atividade humana sobre a qual estamos chamando atenção numa época de progressiva tendência ao esquecimento e à amnésia. O historiador francês Pierre Nora, teórico dos “lugares da memória” (lieux de mémoire), diz que “Não se fala tanto de memória porquê não tem mais”, e que “Existem lugares da memória porquê não existem mais meios de memória”; ou seja, a aceleração da história e da vida contemporânea, os fenômenos “da mundialização, democratização, massificação, mediatização” conspiram ao desaparecimento do passado e de um presente que passa tão rápido que não favorece nenhuma reflexão: o presente achatado sobre as breaking news, ou seja um eterno presente sem profundeza ou pano de fundo. De toda forma, estamos falando de uma memória responsavelmente reconstrutiva, investigativa, e não de um estéril exercício de nostalgia sentimental.
​Mas porquê falar da Itália hoje e como falar dela, feitas estas ressalvas sócio-teóricas? Como falar desse país bastante velho e jovem ao mesmo tempo, lugar de uma cultura rica e complexa com a qual os mesmos italianos às vezes se deslumbram e sentem-se perdidos, preocupados com a tarefa de entender e de preservar um patrimônio interminável de ruínas e de monumentos? Talvez não seja inútil mencionar a um público brasileiro que os dois últimos presidentes da República Italiana, Carlo Azeglio Ciampi (1999-2006) e o atual presidente Giorgio Napolitano, fizeram e fazem questão de enfatizar o sentimento de um patriotismo irrestrito e solidário e um amor à bandeira italiana como nunca se viu antes na recente história republicana. E isto apesar de um evento que vários cientistas políticos consideram como uma tendência do nosso tempo: a crise do estado-nação perante o fenômeno da mundialização capitalista e de um novo “império”, não mais centrado nos Estados Unidos, mas bem mais extenso. Mas porquê os dois presidentes italianos, há algum tempo, insistem em enfatizar este sentimento de união solidária, que é muito diferente do nacionalismo ideológico e reacionário de outros momentos da história nacional?
​A Itália é uma entidade que historicamente e culturalmente existiu como a base de dois grandes poderes: a Roma clássica (reino, república e império romano) e a instituição Igreja católica com os papas-reis como chefes, ou seja de duas instituições universais par exellence e em potência super partes. A Itália medieval e moderna, até 150 anos atrás, não conhece a união de único estado territorial e sim somente uma união lingüística e cultural de grande efervescência e tradição. O italiano não está acostumado a se ufanar como pertencente a uma história unitária baseada sobre fronteiras claramente marcadas, e sim sobre uma cultura milenária feita de muitas vozes e tradições, com suas mil cidades e bandeiras, centros de autonomia política e pontos de fluxos comerciais, de inúmeros dialetos regionais e provinciais. Existe objetivamente uma pluralidade geopolítica e cultural da Itália, que reflete-se na mesma toponomástica regional: conhecemos desde sempre a Sicília, mas também tivemos ao longo de séculos um Reino das Duas Sicílias, como entidade estadual do reino do sul da Itália, e que acabou em 1860; fala-se “l’Abruzzo”, mas também “gli Abruzzi”, ou seja as duas regiões do Abruzzo e do Molise; outra região, tradicionalmente sob o governo dos pontífices romanos, te, nome plural, “Le Marche”; fala-se “La Puglia” ou Apúlia, no suleste do país, mas também “le Puglie”com suas seis províncias e dois principais dialetos regionais marcadamente diferentes, o dialeto de Bari, a capital, e o da Terra d’Otranto ao extremo sul da região; existem regiões que são um binômio, como Emilia-Romagna, e até três “Venezie” ou três Vénetos, com centro em Veneza (Venezia Euganea), Trento (Trentino) e Trieste, capital da região Friuli-Venezia Giulia. Esta ausência de centro, que reflete-se em um inevitável policentrismo geopolítico e cultural, é tamanha se se considera a importância dos dialetos ao lado da língua nacional. Aliás, o rei Savoia Vitório Emanuel II, primeiro monarca da Itália a partir de 1861, se exprimia mais em francês do que em italiano; a língua do dia a dia dos reis Bourbons de Nápoles era o dialeto napolitano falado pelo povão, o mesmo da grande tradição musical e do folclore popular daquela cidade.
​  A um nível profundo, a Itália é mais uma mátria do que uma pátria. Convergem aqui vários elementos: a antiga religião pagã mediterrânea, a centralidade da tradição da Igreja católica, Mater et magistra, par exellence, (mãe e mestra), só para citar a importante encíclica social do Papa João XXIII (1961), um certo matriarcado antropológico mediterrâneo especular à história de séculos de invasões de povos bem guerreiros e machos. O mesmo nome de Roma, etimologicamente derivado do grego clássico, significa ‘força’. Mas não deixa de ser igualmente válida e fascinante a etimologia do arcaico ruma, ou seja mama, mammella em italiano, palavra que se liga bem com o âmbito semântico-simbólico dos dois fundadores da cidade, Romolo e Remo que mamam a loba, cena prestes a se tornar ícone gráfico da cidade.
​Na Itália a pátria é representada muitas vezes por lugares da memória, ou seja monumentos e esculturas ao centro de praças e parques públicos. Trata-se na maioria dos monumentos aos 600.000 militares italianos mortos na Primeira Guerra Mundial (1915-18), a “Grande Guerra”, como foi chamada. Habitualmente o monumento, em bronze ou em mármore, consiste em uma figura de mulher, linda, estatuária e materna, que expõe nos seus braços o filho-soldado morto. O importante poeta Giovanni Pascoli em um famoso discurso patriótico de 1911 antecipara o clima de entusiasma intervencionista na guerra, dizendo: “Luta de emulação entre irmãos, oficiais ou soldados, para quem ame mais a mãe comum, a qual os prémia com iguais honores e os envolve mortos no mesmo tricolor”. Mas além do arquétipo materno, com a luta de décadas do Risorgimento nacional, de qualquier forma os italianos ganham oficialmente uma figura de pai moderno: a novidade é o primeiro rei, o piemontês Vitório Emanuel II, acompanhado por um terceto de pais nobres que resume as aspirações e as correntes político-ideais da luta pela união da península: o primeiro ministro Camillo Cavour, o patriota e teórico idealista Giuseppe Mazzini, o militar Giuseppe Garibaldi, o qual também deixou rastros significativos entre Uruguay e Brasil. O historiador Mario Isnenghi mostrou que numa estatística dos monumentos públicos nas praças da Itália a vencer é a dupla Vitório Emanuel II-Garibaldi.
​Recentemente o historiador Paul Ginsborg da Universidade de Florença, parte de um trabalho de devassa memorial do Risorgimento nacional, tem evidenciado quatro elementos importantes constitutivos desse período histórico às vezes pouco considerados ou esquecidos, e sobre os quais vale a pena refletir para esclarecer a contribuição da Itália à modernidade européia e mundial. Esses quatros elementos são:
1. A longa tradição do autogoverno urbano na história do país, com seu auge no patriotismo de dois experimentos políticos democráticos: as Repúblicas de Veneza e de Roma nos anos 1848-49;
2. A quase natural vocação européia da Itália;
3. A igualdade como ideal político perseguido por significativas minorias dentro do movimento do Risorgimento;
4. “A presença na história italiana da mitezza (suavidade) como virtude social”.
No que diz respeito ao primeiro ponto, a primeira referência histórica a se fazer é a grande civilização das comunas medievais, que desenvolveu-se sobre tudo no centro-sul da península nos séculos XII, XIII e XIV. A Itália é tradicionalmente a terra das mil cidades e municípios independentes, vibrantes centros de atividades comerciais e culturais, que mandam ao território circunstante até, mais tarde, se tornarem verdadeiros estados regionais. A palavra-chave a ressoar no meio dessa cultura urbana é a palavra latina libertas, liberdade, ao mesmo tempo programa político e ideologia, a qual, perpassando antepassados nobres como Liberté, Egalité, Fraternité da Revolução francesa, chega a expressões contemporâneas, como a palavra LIBERTAS no símbolo da Democrazia Cristiana, ao longo de cinqüenta anos o maior partido político da jovem democracia pós-guerra, até o recente partido criado há dois anos pelo premier Berlusconi, PDL ou Popolo della Libertà. A lição da autonomia comunal perpassa na modernidade italiana graças a um debate teórico provocado por intellectuais que visavam o modelo das comunidades camponesas e mercantis da Suiça e dos Estados Unidos das origens: o suíço Sismonde de Sismondi (1773-1842) e os teóricos da época do Risorgimento nacional Carlo Cattaneo e Giuseppe Ferrari. Para esses pensadores o autonomismo federalista produz bom governo e fortalece a virtude e as instituições do republicanismo, ainda contemporâneo dos últimos resquícios do ancien règime. Entre as revoluções européias do aventurado 1848, destacam-se as revoluções italianas dos cinco dias de Milão (“Le cinque giornate di Milano”) e, sobretudo, insiste Ginsborg, os experimentos republicanos e democráticos das repúblicas de Veneza e de Roma, caracterizados pelo sufrágio universal masculino e uma participação política nova que vai na contramão da monarquia e do centralismo estadual. O legado de séculos de autonomia das cidades-estado italianas, combinada com a lição do federalismo de Cattaneo, corrente de pensamento aliás fadada a ficar minoritária e sem êxito, pode ser visto em ação em pleno século XX: no pensamento de Antonio Gramsci com seu jornal “Ordine Nuovo”, no programa político de uma força importante da frente antifascista e dos primeiros anos da república democrática, o Partito d’Azione, até os ideais de democracia direta, dal basso, como dizia-se então, e de autogestão da produção industrial da geração de estudantes e operários de 1968 e além. Cabe  aqui acrescentar que a ótima definição do livro de Zuenir Ventura, 1968: O ano que não terminou, adapta-se perfeitamente ao ’68 italiano. Differentemente dos eventos na França e na Alemanha, no caso italiano fala-se corretamente de “ombra lunga del ‘68”, (sombra longa, extensa de ’68), ou seja, a contraditória, porém extraordinária, vitalidade dos movimentos políticos italiano extende-se a toda a década dos setentas.
Sobre o segundo tema, é bem se lembrar que a Itália, data também a sua especial colocação geográfica, e chamada de “jardim do Império” desde a época medieval, fica ao centro do universalismo do Sacro Romano Império e dos Papas. O mais específico interprete desse universalismo europeu, a Respublica christianorum ou respública dos cristãos, é o imortal poeta e literato Dante Alighieri (1265-1321). Assistimos a uma antiga história de amor entre a península ensolarada e o norte do continente, apesar de um sentimento de superioridade artístico-cultural veiculado pelos humanistas como Francesco Petrarca até o século XV, humanistas que chamavam de “bárbaros” os povos do norte. Mas esses “bárbaros” não deixam de descer ao sul e de visitar esta terra dona de uma especial harmonia entre natura e cultura. O Grand tour de iluministas e românticos, de grandes intelectuais como Goethe, ou dos poetas ingleses Byron e Shelley, coloca de novo a Itália ao centro da nova identidade européia. Enquanto Cavour e Garibaldi atuam como os dois personagens de maior propensão européia, Mazzini e Cattaneo teorizam uma aliança internacionalista entre os “povos da Europa”, e o segundo os “Estados Unidos da Europa”, isto em 1848. Mais uma vez, trata-se de um patrimônio ideal desperdiçado quando as elites italianas e seus governos, em vez de investir em um projeto nacional-democrático, acabam caindo na tentação de imitar a agressividade do imperialismo colonialista de outras nações européias na África oriental e setentrional. Apesar dos ganhos territoriais com a vitória na Primeira guerra mundial, ao custo de 680.000 mortos e 500.000 inválidos, esse evento construi os alicerces do ultranacionalismo, da autocracia fascista e da futura aliança com o hitlerismo. O momento mais alto da contribuição italiana ao europeísmo está no Manifesto do federalismo europeu escrito por dois militantes antifascistas, Altiero Spinelli e Ernesto Rossi, enquanto exilados pelo regime mussoliniano numa pequena ilha do mar Tirreno. O Manifesto de Ventotene inspirou a criação do Movimento Federalista Europeu. Em 1957 os tratados assinados em Roma deram origem à primeira forma do mercado comum europeu. Se o povo italiano foi considerado em pesquisas de opinião entre os mais favoráveis à idéia européia, não foi sempre o mesmo no que diz respeito aos governos italianos, caracterizados por um europeísmo mais de tipo “reativo” do que “ativo”, sugere Ginsborg.
Hoje em dia a Europa é uma realidade de união político-económica de 27 países, mas a construção e o aperfeiçoamento dela são bem longe de ser completos. É só pensar em aspectos paradoxais. Alguns exemplos. Há quinze meses um país pequeno mas importante como a Belgica está sem governo; um país fundador da Europa é refém de uma rixa política infinita entre a parte norte mais rica dos flamengos e a parte sul dos valones de língua francesa. É notícia de algumas semanas atrás que o governo da Grécia, país mais endividado e pobre da União européia, pretende construir um canal aquático longo 120 km., como fronteira para se defender de uma eventual invasão de migrantes ilegais da Turquia, importante país muçulmano e laico, inclusive candidato faz tempo a entrar plenamente na União. Tentações secessionistas, egoísmos políticos vários ainda assolam a dialética social na Itália e na Europa, mas só um federalismo solidário e radicalmente democrático podem construir uma nova entidade supranacional.
Sobre o terceiro tema: a busca pela igualdade. Ao amanhecer de 1861, 150 anos atrás, a jovem nação enfrenta uma série de “questões” ou problema nacionais estruturais. Esses são: a questão romana: a Roma papal é ainda a capital de um estado hostil ao novo Reino da Itália unificada, o estado do Vaticano, protegido pelas tropas francesas; a questão meridional, ou o problema do atraso histórico do sul do país; uma mais geral questão social, ou seja a necessidade de reformar socialmente e politicamente um país amplamente camponês e pelo 80% analfabeto, afetado por profundas desigualdades econômicas e sociais. Movimento decisivo pela entrada da Itália na modernidade das nações européias, o Risorgimento foi um fenômeno protagonizdo por restritas elites políticas, que não sempre estavam interessadas em reformar democraticamente a sociedade inteira. Nas primeiras décadas após 1861, acontecimento praticamente ignorado por longo tempo pela historiografia oficial, o exercito nacional, modelado sobre rígidos esquemas militares piemonteses, respondeu com uma repressão sangrenta a formas de resistência populares e camponesas que buscavam sair da indigência e da dependência da estrutura latifundiária e parasitária da terra. O sul da Itália, mas também outras partes como o Véneto meridional, a Lunigiana toscana na década de oitenta..., tiveram seus próprios “jagunços”, usando um termo bem brasileiro e sertanejo, ou seja, resistentes armados, os briganti, e grevistas anárquicos e socialistas. Cabe aqui lembrar um paralelo evidente entre Itália e Brasil. Os dois países vivem um simétrico final de século reacionário. É desnecessário insistir sobre o valor de cena arquetípica na história do Brasil moderno da resistência e do extermínio do arraial de Canudos no norte da Bahia (5 de outubro de 1897), um acontecimento da força social e simbólica de uma Comuna de Paris em 1871. Semelhantemente, em maio de 1898 eclode na cidade de Milão um protesto popular contra a fome e os impostos. O governo do primeiro ministro Di Rudiní responde enviando o exército do General Bava Beccaris, que usa o fogo dos canhões, deixando no chão cem mortos. Muitos outros exemplos de lutas sociais pela emancipação de inteiras comunidades locais poderíamos enumerar no Brasil e na Itália, entre século XIX e século XX, da Cabanagem paraense à guerra do Contestado paranaense; na Itália o “Biennio rosso” (Biénio vermelho), um movimento de ocupações operárias das usinas e motins nos campos entre 1919 e 1920, e a guerra civil entre setembro 1943 e maio 1945 travada entre os nazistas ocupantes, aliados do exército de Mussolini no centro-norte da Itália, contra a frente democrática da Resistência antifascista. É o espírito da renovação democrática e progressista da Resistência a entrar na nova carta constitucional da República Italiana, aprovada em 1946.
Mas a busca pela igualdade, sendo um projeto aberto e incerto, evidencia na história italiana um constante caráter de oposição entre “país  real” e “país legal” ou oficial, com uma perigosa tendência, hoje em dia, a graves conflitos de interesses econômicos, e à formação de grupos político-financeiros absolutamente contrários ao  bem comum republicano e à “democracia progressiva” anunciada na Constituição. Uma antiga opinião roda nos livros de historiadores e cientista políticos. Trata-se da tese do teórico da “Revolução Liberal” Piero Gobetti (1901-1926), segundo a qual o fascismo não representava um parêntese passageiro da história nacional, como pensava outro influente filósofo, Benedetto Croce, porém uma “autobiografia da nação”. Ou seja, o nacionalismo exasperado junto ao autoritarismo classista e reacionário pareciam a Gobetti um elemento invariável da história nacional, um fio negro da sua identidade. Até hoje, não deixam de fazer refletir as palavras de um dos maiores filósofos da política do século XX, Norberto Bobbio, amplamente estudado nesse país, que, numa entrevista ao diário La Stampa em 1994, dizia: “Eu me pergunto frequentemente se o berlusconismo não seja uma espécie de autobiografia da nação”. Concluindo sobre o tema da busca pela igualdade, acho a italiana uma cultura que protagoniza extraordinariamente ao longo de séculos um discurso de urgência filosófica, uma atenção à imanência e ao engajamento político, começando com Dante político até Maquiavel, Vico e Gramsci. Esta mesma cultura porém, sugere o historiador do “caráter” dos italianos Giulio Bollati, parece basear-se também sobre uma “combinação, com taxa mínima de modernidade” de conservação e inovação. Bollati nos convida a refletir sobre a “relação de distinção histórica, e ao mesmo tempo de cumplice solidaridade, entre tradição e inovação, o que é a constante da moderna história italiana”.
O quarto elemento apontado pelo historiador anglo-florentino Ginsborg é a mitezza, ou suavidade, como virtude social. Da civilização da antiga Roma, não conhecemos somente a força militar, a justeza do direito romano ou a personalidade forte dos grandes comandantes, todos elementos que foram retomados e exaltados por Maquiavel. Existe um outro vertente da cultura romana clássica que corresponde à pietas. Mas, apesar da fácil associação com a virtude cristã, o sentido original dessa palavra coloca-se em um âmbito pré-cristão. A pietas romana tem o duplo valor semântico de religião da família e dos antepassados (lares et penates), e de religião da pátria. O típico representante dessa religião civil e laica é o pius Aeneas da Enéida virgiliana. Após a destruição de Troia, Enéas se torna também um refugiado, um migrante, um xénos, segundo os gregos, ou seja, um estrangeiro. Na sociedade grego-romana do Mediterrâneo antigo o estrangeiro tem um status à parte. Merece um tratamento e um respeito especial como ser humano que veio de fora, de longe. Em 1994 um ensaio do Bobbio, Elogio della mitezza, atualizava sobre a suavidade: “O homem suave é o homem do qual o outro precisa para vencer o mal dentro de si”. Virtude “a mais impolítica entre todas”, segundo o filósofo torinês, a suavidade social não representa um simples e abstrato “buonismo”, se diz na Itália, um exercício limitado de boas intenções ou de political correctness. Ginsborg parece ir além Bobbio, associando mitezza a fermezza (firmeza), e, resgatando o termo grego praòtes das fontes Evangélio de Mateus e dos Sermões de João Crisóstomo, enfatiza o sentido de mudança social, de força voltada a persuadir um inimigo violento a não praticar um crime. Ginsborg nos lembra do impacto inovador das teorias jurídicas de um Cesare Beccaria e do seu tratado de 1764 Dos delitos e das penas, apontando o Grão-Ducado da Toscana como o primeiro estado do mundo a abolir a pena capital em 1786, e terminando com uma lista de heróis românticos do Risorgimento, e alternativos ao tipo romântico “luciferino” à la Byron, como Santorre di Santarosa, os irmãos Bandiera, Pisacane e o mesmo Garibaldi, todos exemplos de ternura e de determinação generosa, necessárias “para dar novo fundamento à política”. Impressiona a generosidade e o idealismo de um Carlo Pisacane, uma espécie de Che Guevara ante litteram, massacrado em 1857 por camponeses napolitanos, que ele pretendia libertar do atraso e do despotismo monárquico.
Existe uma suavidade brasileira como virtude social? Vem de imediato à toa o “homem cordial” brasileiro, conceito inventado pelo poeta modernista e penumbrista Ribeiro Couto, o qual deve ser entendido na sua complexidade, no bem e no mal: o brasileiro, contrário ao comportamento formal e convencional, seria ao mesmo tempo levado à permissividade, à agressividade e à violência. Na verdade, a cordialidade brasileira está mais a vontade com o conceito de “luso-tropicalismo” teorizado pelo mestre do Recife Gilberto Freire, e menos com a visão de um outro mestre, o weberiano Sérgio Buarque de Holanda, que a aceitava mas com muitas ressalvas. E, de toda forma, para Sérgio Buarque o comportamento cordial pertence à “esfera do íntimo, do familiar, do privado”, não do social. Do lado italiano, todo mundo está familiarizado com a expressão estereotípica “italiani brava gente” ou, como dizem os brasileiros, “buona gente”. Foi a propaganda do fascismo mussoliniano a divulgar esta invenção de um caráter italiano eternamente bom e de congênita humanidade, para disfarçar a belicosidade das conquistas coloniais, a violência contra os adversários políticos e o autoritarismo administrado em todo momento da vida pública e privada.
Na verdade, está mais do que na hora para italianos e brasileiros juntos de entregar à la poubelle de l’histoire os vários estereótipos nacionais que ainda circulam na cultura e na comunicação popular. O mais freqüente de todos seria a equiparação entre o “jeitinho” brasileiro e “l’arte di arrangiarsi” dos italianos. Mas, como estamos na Amazônia oriental, gosteria de concluir com uma metáfora que tem a ver com a natureza vegetal. Alguns anos atrás, me impressionou a leitura do ensaio de um classicista, professor na Universidade de Siena, Maurizio Bettini, e com título polêmico: “Contro le radici”. Na verdade é fácil constatar uma retórica de tipo biologístico, quando o assunto é a tradição cultural e a identidade de um povo: raízes, terra, árvores genealógicas, sangue... Típico o princípio dos nazistas Blute und Erde (sangue e solo, sangue e terra), que inspirou a política de extermínio de povos considerados não arianos. Só que analizando, comparando os vários tipos de “memória coletiva”, ou interna, fortemente ligada a determinados grupos e a seus quadros sociais, e a “memória histórica”, ou externa, que é independente de tudo isso e que aliás elabora livremente “as histórias parciais” (Halbwachs) em circulação, descobrimos o caráter de construção e de reconstrução da tradição com que os vários grupos organizam a sociedade, adaptando-se às mudadas condições temporais e sociais. A invenção de uma tradição mais ou menos rígida e supostamente única, original, (mito a ser desconstruído com a ajuda de um Nietzsche: o mito das origens e de um fundamento [Grund] incontestável), nos faz pensar em raízes de tipo vertical, embora na natureza existam também as de tipo horizontal. “Metáforas horizontais da tradição teriam a vantagem de nos ensinar que pode-se muito bem pertencer a uma determinada tradição, porém sem nos sentirmos prisioneiros” (Bettini).
Sou contra uma identidade feita de raízes verticais que me confirmam na complacência do olhar para o meu próprio umbigo, que nunca me fazem encontrar o outro ou o vizinho ao meu lado, na horizontalidade da descoberta plena da existência e na abertura da paisagem, quando a floresta finalmente termina, e os raios do sol penetram no aberto, querendo usar uma famosa metáfora silvestre do filósofo Heidegger (Lichtung, clareira). Companheiros do mesmo caminho horizontal, superando todo provincianismo mortificante, nós somos um diálogo.
 
BIBLIOGRAFIA:
NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. 7 voll. Paris: Gallimard, 1984-.
GINSBORG, Paul. Salviamo l’Italia. Torino: Einaudi, 2010.
BUARQUE DE HOLLANDA, Sérgio. “O homen cordial”. In Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
DEL BOCA, Angelo. Italiani brava gente? Vicenza: Neri Pozza, 2005.
BOBBIO, Norberto. Elogio della mitezza e altri scritti morali. Milano: Linea d’ombra, 1994.
BOLLATI, Giulio. L’italiano. Il carattere nazionale come storia e come invenzione. Torino: Einaudi, 1983.
BETTINI, Maurizio. “Contro le radici. Tradizione, identità, memoria”. In il Mulino, n. 393, anno L, gennaio-febbraio 2001. Bologna
HALBWACHS, Maurice. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1952. La memoria collettiva. Trad. Ital. A cura di P. Jedlowski. Postfazione di L. Passerini. Milano: Unicopli, 1987.