Caleidoscópio dentro de caleidoscópios
José Arthur Bogéa
O título é longo e inusitado – O Armagedon na Cidade do Pará e a polêmica ressurreição do EngoleCobra — mas, só isso não explica o relativo silêncio sobre o livro de Flávio Sidrim Nassar [1952] publicado no primeiro ano deste novo milênio. Talvez, porque Belém, Narcíso às avessas, não gosta de se olhar no espelho. O Autor revisita a história, a cultura e o imaginário desta Santa Maria de Belém que os registros mais antigos tratam como Cidade do Pará. Armagedon [como passo a abreviar] é resgate e desmistificação.
O livro de Nassar pode ser considerado uma versão pós-pós-Moderna do Compêndio das Eras da Província do Pará [1829] de Antônio Ladislau Monteiro Baena [1782-1850] título poético para a precisa narração dos fatos históricos. Ambos têm como ator o Tempo, nos conceitos de Heráclito [ c. 540 a.C- 480 a.C] a Heidegger [1889-1976] e, por que não, à Oração ao Tempo, de Caetano Veloso [1942].
As figuras históricas, citadas nos dois livros, são simples atuantes. Paralela ao tempo/ser a evolução da linguagem. Nassar arisca uma “variante dialetal do Português que, possivelmente, se falará no mercado do Ver-o-Peso por volta de 2016” [2001:10] exatos quatrocentos anos da fundação da Cidade. O Autor traduz, assim, as mensagens para o “português hodierno”, expressão que se insere no arco do tempo, onde futuro e passado se encontram e geram o inalterável.
O “Livro Uníco” de Baena começa em 1615, “Que compreende os Fastos da Gente Luzitana desde que Francisco Caldeira de Castello Branco lançou os cimentos da Provincia do Pará até que esta adherio aõ Systhema Brazílico” [1969:21]. Nassar se atém aos “sinais dos tempos”: “- Não há dúvida, o ano de 1616, quando foi fundada Belém, foi aziago, foi também, o ano da morte de Shakespeare e Cervantes” [2001:89]. O primeiro vai até 1823, quando do “Regresso do Throno para o berço da Monarchia” - “Finis” [1969:387] e o segundo “No princípio do fim – finnicius – (quando) o arcanjo soou a trombeta do Apocalipse” [2001:15].
Enquanto no Armagedon um computador “de vez em quando pega um santo eletromagnético, e ‘recebe’ e-mails de procedência desconhecida” [2001:9], Baena se refere a uma “laborioza fadiga” [1969:15], além, é claro, do contraste entre o “hieróglifo digital” [2001:9] do ficcionista e o “traço da pena” [1969:17] do historiador. Se o primeiro revela que “mesmo em português (o texto) continua nebuloso” [2001:9], a preocupação do segundo é ir além da “fadiga apographa” [1969:15]. Aproximações e distanciamentos entre os dois autores, reforçam a característica única da Literatura Amazônica, o embricamento da ficção com a história.
Há aproximações e contrastes entre os dois autores. Enquanto Nassar, na nota prévia, se apresenta apenas como um “transcodificador” [2001:12] Baena, na folha de rosto enumera títulos e honrarias: “Moço Fidalgo da Imperial Casa, Cavaleiro da Ordem Militar de São Bento de Aviz, Sargento Mor e Commandante que foi do Corpo de Artilheria de Linha da referida Província, e Professor de sua Escola Militar &tc”.
Nos dois aparece a figura do “atravessador”. O próprio Baena faz a travessia entre os fatos vividos e os fatos contados. Nassar passa a tarefa a um “anônímo” (que) “se identifica como um atravessador de Backu” [pg.12]. O Backu é a grande metáfora do Armagedon: “grafia futura do bacu, peixe [...] comum aos rios amazônicos, cujo nome se origina da palavra tupi Ba’ku [...] conhecido pela avidez com que devora dejetos” [p.11] — se a narrativa vem do futuro para o passado, este passado se firma no presente resumido nesta única palavra.
O Armagedon de Nassar assume as características de um reality show. A ambiguidade da escritura permite diferentes leituras, como a afirmativa pela negativa: “A municipalização do Juízo Final se tornou possível graças à onipresença, atributo que possibilita Deus estar presente em todos os lugares ao mesmo tempo” [p.15]; ou, a leitura da negativa pela afirmativa: “Dom Alberto não faria uma patacoada dessas!” [p.20]
Esta ambivalência talvez seja a característica mais marcante do Armagedon, fixada na dualidade de imagens de “Nossa Senhora de Nazaré: a achada e a do Círio” [p.18]. Quando não, o próprio objeto da narrativa é colocado através de visões antagônicas, como a escolha do Edifício Manuel Pinto da Silva como sede do juízo final. Reduplicação do conceito de Lacan de que é o outro que me determina.
A leitura tem um lado avesso que é revelador. Quando Belém é escolhida para sediar a “experiência—piloto” do Armagedon, com o argumento de que “a cúpula celeste estava interessada em ter uma noção da maneira como em uma cidade equatorial haviam florescido as virtudes cristãs” [p.17], Nassar remete à matriz do “Não existe pecado ao Sul do Equador”. E, são estas citações in/diretas e a riqueza das intertextualidades que fazem uma escritura particular.
Os atuantes de Nassar aparecem em suas formas e atributos, como “Francisco Caldeira, o fundador [...] Landi, que ergueu altares e palácios. Ou Plácido, também ele o fundador da Belém mítica e virtual [...] Lemos, o modernizador [...] o EngoleCobra [EnC] um flanêur que vagueava pela cidade” [p.17]. Surgem também através do simulacro, como Frei Caetano Brandão que “preferiu comparecer na forma de sua estátua do Largo da Sé, pois era mais baixo, mais barrigudo, mais feio que o bronze que o imortalizara” [p.19].
Há outros nomeados diretamente, como o maestro Waldemar Henrique, por aproximação de sonoridade como o poeta Mário Virgino, ou por um código particular através de um jogo de palavras D’Ellas, ou ainda, bem dentro da característica do roman à clef revelados por codinome, geralmente ridicularizante como monsenhor Voando Penas — as figuras eclesiásticas parecem o alvo preferido das investidas do Autor.
O universo do Armagedon é um espaço predominantemente masculino, como nos livros de História. As mulheres ocupam um lugar, secundário, à parte. Nossa Senhora de Nazaré fala inglês: “Heres Comes Everybody” [p.123] - as metáforas do Hino à Virgem [citadas no con/texto] justifícam o emprego do verbo inglês no sentido denotativo e conotativo. Só a ficção pode juntar um trio impensável: Mara, Fafá, Leila, em cantoria à Padroeira. Dona Leopoldina é apresentada apenas como urna “fazendeira do Marajó”, e as anônimas “mulheres de calcinhas novas” [p.35] — fetiche? — se juntam aos grupos de vaqueiros e estivadores do cais do porto.
Impossível passear pelas páginas do livro, sem se ater à apresentação gráfica — um exemplo de que não se pode separar forma e conteúdo. O Autor joga com palavras e ícones, além de um percurso pelas diferentes escolas literárias, o leitor também se depara com a evolução da escrita, itálicos para códices, textos ‘dactilographados’ e a ultramodernidade do computador. Além da fina ironia — nunca o deboche — que perpassa a narrativa há o prazer de uma leitura 1údica.
O exercício de apreensão do texto múltiplo e, como o próprio Autor determina, invade outros campos da cultura, além da história: “Todos eram uma alegoria, um samba enredo, um filme, uma história ou uma pintura Cubista, que se vê ao mesmo tempo de frente, de costa [sic], de cima, de baixo” [p.111] — no original as vírgulas são substituídas por ícones, traduzido como “Caleidoscópio dentro de caleidoscópios” [p.105].
Nassar, com o Armagedon, pode ainda ser apontado como o sucessor da escritura de Felippe Patroni [1789-1866] o real introdutor do Modernismo na Literatura da Amazônia, nos idos dos oitocentos. Uma referência maior que Baena, no campo da Literatura, porque ambos utilizam o que se convenciona chamar de leitura do estranhamento.
Publicado em O Liberal, caderno Cartaz de 6/07/2003
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