sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Melvinia e Sally, negras americanas


Folha de SãO Paulo  20 de junho de 2012
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ELIO GASPARI
Melvinia e Sally, negras americanas

Michelle Obama tem um pé na casa-grande, pois a senzala era um harém para os fazendeiros americanos

CONFIRMADO: O trisavô da companheira Michelle Obama era branco. Exames de DNA provaram que ela descende do filho de um pequeno fazendeiro da Geórgia. O rapaz deveria ter seus 20 anos e, por volta de 1860, acasalou-se com Melvinia, uma escrava de seus 15.
Em 2009, a repórter Rachel Swarns, do "New York Times", revelou a existência de Melvinia, de quem Michelle nunca ouvira falar. Desde então ela colheu amostras de DNA de três parentes de Michelle, de uma bisneta do filho de Melvinia e de uma descendente branca do filho do fazendeiro. Agora publicou "American Tapestry" ("Tapeçaria Americana - A história dos ancestrais negros, brancos e multirraciais de Michelle Obama"). O e-book sai por US$ 14,99. De Melvinia sabe-se quase nada. Com as guerreiras negras de quem descende Michelle, aprende-se muito.
Numa ironia dos tempos, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos é produto da tenacidade de um casal branco do Kansas, que praticamente perfilhou o menino Barack, nascido de um casamento desajustado de sua filha com um queniano. Negro mesmo é o ramo de Michelle, com um pai zelador e a mãe, Marion, dura como rocha.
É ela quem descende de Melvinia. Mora na Casa Branca, onde cuida das netas e faz compras nos supermercados próximos.
O rastro de Melvinia é um pedaço vivo da história dos Estados Unidos. Quase todos os descendentes do sinhozinho do século 19 evitam falar do assunto, pois não lhes fica bem entrar na Casa Branca pela porta da senzala. Antes de Melvinia, os descendentes de Thomas Jefferson contestavam que ele tivesse vivido maritalmente com a escrava Sally Hemmings, com a qual teve um número incerto de filhos, talvez seis.
Antes de ser eleito presidente (1801-1809), Jefferson, viúvo, levou Sally para Paris, como criada de sua filha. A moça tinha 14 anos e era mulata muito clara. Seu pai e um avô eram brancos. Retratando a época, Sally e sinhá Martha, a mulher de Jefferson, tiveram o mesmo pai. Em 1997, exames de DNA mostraram que um homem do ramo de Jefferson era ascendente de pelo menos um filho da escrava. Sally, seus irmãos e seus filhos viveram como criados na fazenda do patriarca, em melhores condições que Melvinia.
Dolly, a fenomenal mulher de James Madison, sucessor de Jefferson, teria dito que as mulheres dos fazendeiros americanos eram as "escravas-chefe" do "harém dos senhores". Pouco se sabe de Charles, o filho do fazendeiro. Melvinia morreu em 1938 e não falava do assunto. Dos Hemmings sabe-se mais, porque um filho de Sally contou seu caso em 1873. Pena que os Jeffersons tenham queimado parte da correspondência do ex-presidente.
A história de Jefferson com Sally e sua família está em "The Hemmingses of Monticello - An American Family", um grande livro, ganhador do premio Pulitzer. O e-book sai por US$ 9,99.
O jovem professor brasileiro Bruno Carvalho escreveu na Universidade Harvard em 2005 um brilhante estudo, intitulado "Cláudio Manuel da Costa e Thomas Jefferson, dois 'Pais da Pátria' e o tema das relações inter-raciais no Brasil e nos Estados Unidos". Ele mostrou como o poeta da Inconfidência tratou a escrava Francisca Arcangela Cardoso com quem viveu por 30 anos e cinco filhos, a "bela Eulina, que é todo meu amor, o meu desvê-lo". Já os Jeffersons deletaram Sally.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Pussy riot

Pussy riot = Revolta da Xoxota ou seus sinônimos, mais acres ou mais doces. Site oficial em russo:

sábado, 11 de agosto de 2012

Comentário Prof. Benedito Ferreira

DEBATENDO COM AS "ANÁLISES" QUE SURGEM...

Caro Flávio Nassar, sobre seu texto, me permita os comentários:

1) Raciocinar pelo tempo é EXATAMENTE o que o governo quer, pois ele, descomprometido com a educação pública, torna DELIBERADAMENTE a greve longa para nos matar no cansaço!

(...quanto a garantir o que conseguimos antes que seja tarde..)

2) Prefiro ZERO a essa proposta do governo! (nossa luta não se esgota com esta greve). 

Precisamos ler com atenção o acordo que o governo assinou consigo mesmo (Proifes) e a análise do ANDES mostrando porque ela é PÉSSIMA para nós e para a universidade pública brasileira. 

O que dizer do "congelamento" dos associados? e da desvalorização absurda da Dedicação Exclusiva? E da enganação de reajustes anulados pela inflação de 3 anos..?

Venha para a luta!

Como ex-diretor fundador da Adufpa, VENHA PARA A LUTA! precisamos da sua ajuda no fortalecimento do nosso movimento. NÃO É HORA DE RECUAR. O PRÓPRIO GOVERNO DÁ SINALIZAÇÕES DISSO E NÃO SEREMOS NÓS A "DERRUBAR O REI" ANTES DA HORA!!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará

1839

A íntegra da obra está disponível para baixar gratuitamente no sítio Domínio Público do Governo Federal:

Pag: 25.
Entre os cafios selvagens dessas diferentes cabildas, todas as
suas pessoas louçainhas consistem na nueza; poucos cobrem o órgão de
dar vida a novos seres com uma pequena frontaleira de miçanga, ou de
fio torcido de estopa branca extraída da tona do Tururi; e mesmo entre
algumas cabildas, como a Tucuna, do rio Içá, as mulheres não escondem
o cofre dos deleites da ternura. Só os cambebas fazem para seu uso de
pano de algodão roupas talares sem mangas e abertas nos lados mui semelhantes às casulas eclesiásticas; eles são mais alvos que os outros silvícolas, e até menos estúpidos.
Segundo iDicionário Aulete
Cabilda: (ca.bil.da)
sf.
1. Tribo nômade, ou agregado de famílias aldeadas, esp. de certos povos do N. da África, ou de ciganos etc.
2. P.ext. Bando, súcia
[F.: do ár. qabila.]
Louçainha:
s. f. || trajo cheio de atavios; objeto cheio de fausto e garridice; adorno, enfeite; conjunto de objetos que dão ao todo um ar de luxo e de garridice fora do costume: Não lhe saem da ideia as louçainhas e menos quem lhas deu. (Castilho.) F. cf. Louçainho.
Nueza
s. fo || mesmo que nudez. F. Nu1.

domingo, 18 de setembro de 2011

Os italianos irmãos mais velhos dos brasileiros

OS ITALIANOS, IRMÃOS MAIS VELHOS DOS BRASILEIROS: DIÁLOGO SOBRE A    
IDENTIDADE AOS 150 ANOS DA ITÁLIA MODERNA
 
Paolo Spedicato (2011)
 
​A cultura católica e cristã em geral, sobre tudo em tempos de ecumenismo e de diálogo, tem o costume de chamar os judeus “irmãos mais velhos”, “fratelli maggiori”. Trata-se de uma manifestação de respeito pela primogenitura histórica e pela herança moral do antigo povo monoteísta, assim como protagonizadas e contadas pelo Antigo Testamento. Fora de metáfora, gosteria aqui de usar o mesmo paradigma, chamando os italianos de irmãos mais velhos dos brasileiros. Afinal, a península italiana tem quase três milênios de história documentada e o Brasil moderno é um jovem de somente quinhentos anos, embora muito mais velho em termos de pré-história antropológica e arqueológica. Mas sabemos que a história dos acontecimentos humanos é cheia de surpresas e paradoxos. É só pensar no caso do Brasil moderno, nascido do “brado retumbante” dos campos de Ipiranga em 1822, uma data que o faz mais velho da Itália unida moderna, cujo aniversario, a partir de 1861, este ano celebramos e recordamos.
​Mas porquê relembrar, celebrar uma data histórica, embora significativa para uma comunidade nacional? O poeta romântico Giacomo Leopardi, do ponto de vista do seu ‘sistema’ de pensamento materialista e pessimista, escreveu que as festas de aniversário, privadas ou públicas, representam “ilusões”positivas, momentos bonitos, sendo as ilusões os únicos elementos que podem dar valor a uma existência sombria e sem sentido. E o influente filósofo alemão Martin Heidegger entende a atividade filosófica como um “recordar-se”, ou pensar como um repensar o “ser” esquecido pela história da metafísica. Pois é: a memória é aquela atividade humana sobre a qual estamos chamando atenção numa época de progressiva tendência ao esquecimento e à amnésia. O historiador francês Pierre Nora, teórico dos “lugares da memória” (lieux de mémoire), diz que “Não se fala tanto de memória porquê não tem mais”, e que “Existem lugares da memória porquê não existem mais meios de memória”; ou seja, a aceleração da história e da vida contemporânea, os fenômenos “da mundialização, democratização, massificação, mediatização” conspiram ao desaparecimento do passado e de um presente que passa tão rápido que não favorece nenhuma reflexão: o presente achatado sobre as breaking news, ou seja um eterno presente sem profundeza ou pano de fundo. De toda forma, estamos falando de uma memória responsavelmente reconstrutiva, investigativa, e não de um estéril exercício de nostalgia sentimental.
​Mas porquê falar da Itália hoje e como falar dela, feitas estas ressalvas sócio-teóricas? Como falar desse país bastante velho e jovem ao mesmo tempo, lugar de uma cultura rica e complexa com a qual os mesmos italianos às vezes se deslumbram e sentem-se perdidos, preocupados com a tarefa de entender e de preservar um patrimônio interminável de ruínas e de monumentos? Talvez não seja inútil mencionar a um público brasileiro que os dois últimos presidentes da República Italiana, Carlo Azeglio Ciampi (1999-2006) e o atual presidente Giorgio Napolitano, fizeram e fazem questão de enfatizar o sentimento de um patriotismo irrestrito e solidário e um amor à bandeira italiana como nunca se viu antes na recente história republicana. E isto apesar de um evento que vários cientistas políticos consideram como uma tendência do nosso tempo: a crise do estado-nação perante o fenômeno da mundialização capitalista e de um novo “império”, não mais centrado nos Estados Unidos, mas bem mais extenso. Mas porquê os dois presidentes italianos, há algum tempo, insistem em enfatizar este sentimento de união solidária, que é muito diferente do nacionalismo ideológico e reacionário de outros momentos da história nacional?
​A Itália é uma entidade que historicamente e culturalmente existiu como a base de dois grandes poderes: a Roma clássica (reino, república e império romano) e a instituição Igreja católica com os papas-reis como chefes, ou seja de duas instituições universais par exellence e em potência super partes. A Itália medieval e moderna, até 150 anos atrás, não conhece a união de único estado territorial e sim somente uma união lingüística e cultural de grande efervescência e tradição. O italiano não está acostumado a se ufanar como pertencente a uma história unitária baseada sobre fronteiras claramente marcadas, e sim sobre uma cultura milenária feita de muitas vozes e tradições, com suas mil cidades e bandeiras, centros de autonomia política e pontos de fluxos comerciais, de inúmeros dialetos regionais e provinciais. Existe objetivamente uma pluralidade geopolítica e cultural da Itália, que reflete-se na mesma toponomástica regional: conhecemos desde sempre a Sicília, mas também tivemos ao longo de séculos um Reino das Duas Sicílias, como entidade estadual do reino do sul da Itália, e que acabou em 1860; fala-se “l’Abruzzo”, mas também “gli Abruzzi”, ou seja as duas regiões do Abruzzo e do Molise; outra região, tradicionalmente sob o governo dos pontífices romanos, te, nome plural, “Le Marche”; fala-se “La Puglia” ou Apúlia, no suleste do país, mas também “le Puglie”com suas seis províncias e dois principais dialetos regionais marcadamente diferentes, o dialeto de Bari, a capital, e o da Terra d’Otranto ao extremo sul da região; existem regiões que são um binômio, como Emilia-Romagna, e até três “Venezie” ou três Vénetos, com centro em Veneza (Venezia Euganea), Trento (Trentino) e Trieste, capital da região Friuli-Venezia Giulia. Esta ausência de centro, que reflete-se em um inevitável policentrismo geopolítico e cultural, é tamanha se se considera a importância dos dialetos ao lado da língua nacional. Aliás, o rei Savoia Vitório Emanuel II, primeiro monarca da Itália a partir de 1861, se exprimia mais em francês do que em italiano; a língua do dia a dia dos reis Bourbons de Nápoles era o dialeto napolitano falado pelo povão, o mesmo da grande tradição musical e do folclore popular daquela cidade.
​  A um nível profundo, a Itália é mais uma mátria do que uma pátria. Convergem aqui vários elementos: a antiga religião pagã mediterrânea, a centralidade da tradição da Igreja católica, Mater et magistra, par exellence, (mãe e mestra), só para citar a importante encíclica social do Papa João XXIII (1961), um certo matriarcado antropológico mediterrâneo especular à história de séculos de invasões de povos bem guerreiros e machos. O mesmo nome de Roma, etimologicamente derivado do grego clássico, significa ‘força’. Mas não deixa de ser igualmente válida e fascinante a etimologia do arcaico ruma, ou seja mama, mammella em italiano, palavra que se liga bem com o âmbito semântico-simbólico dos dois fundadores da cidade, Romolo e Remo que mamam a loba, cena prestes a se tornar ícone gráfico da cidade.
​Na Itália a pátria é representada muitas vezes por lugares da memória, ou seja monumentos e esculturas ao centro de praças e parques públicos. Trata-se na maioria dos monumentos aos 600.000 militares italianos mortos na Primeira Guerra Mundial (1915-18), a “Grande Guerra”, como foi chamada. Habitualmente o monumento, em bronze ou em mármore, consiste em uma figura de mulher, linda, estatuária e materna, que expõe nos seus braços o filho-soldado morto. O importante poeta Giovanni Pascoli em um famoso discurso patriótico de 1911 antecipara o clima de entusiasma intervencionista na guerra, dizendo: “Luta de emulação entre irmãos, oficiais ou soldados, para quem ame mais a mãe comum, a qual os prémia com iguais honores e os envolve mortos no mesmo tricolor”. Mas além do arquétipo materno, com a luta de décadas do Risorgimento nacional, de qualquier forma os italianos ganham oficialmente uma figura de pai moderno: a novidade é o primeiro rei, o piemontês Vitório Emanuel II, acompanhado por um terceto de pais nobres que resume as aspirações e as correntes político-ideais da luta pela união da península: o primeiro ministro Camillo Cavour, o patriota e teórico idealista Giuseppe Mazzini, o militar Giuseppe Garibaldi, o qual também deixou rastros significativos entre Uruguay e Brasil. O historiador Mario Isnenghi mostrou que numa estatística dos monumentos públicos nas praças da Itália a vencer é a dupla Vitório Emanuel II-Garibaldi.
​Recentemente o historiador Paul Ginsborg da Universidade de Florença, parte de um trabalho de devassa memorial do Risorgimento nacional, tem evidenciado quatro elementos importantes constitutivos desse período histórico às vezes pouco considerados ou esquecidos, e sobre os quais vale a pena refletir para esclarecer a contribuição da Itália à modernidade européia e mundial. Esses quatros elementos são:
1. A longa tradição do autogoverno urbano na história do país, com seu auge no patriotismo de dois experimentos políticos democráticos: as Repúblicas de Veneza e de Roma nos anos 1848-49;
2. A quase natural vocação européia da Itália;
3. A igualdade como ideal político perseguido por significativas minorias dentro do movimento do Risorgimento;
4. “A presença na história italiana da mitezza (suavidade) como virtude social”.
No que diz respeito ao primeiro ponto, a primeira referência histórica a se fazer é a grande civilização das comunas medievais, que desenvolveu-se sobre tudo no centro-sul da península nos séculos XII, XIII e XIV. A Itália é tradicionalmente a terra das mil cidades e municípios independentes, vibrantes centros de atividades comerciais e culturais, que mandam ao território circunstante até, mais tarde, se tornarem verdadeiros estados regionais. A palavra-chave a ressoar no meio dessa cultura urbana é a palavra latina libertas, liberdade, ao mesmo tempo programa político e ideologia, a qual, perpassando antepassados nobres como Liberté, Egalité, Fraternité da Revolução francesa, chega a expressões contemporâneas, como a palavra LIBERTAS no símbolo da Democrazia Cristiana, ao longo de cinqüenta anos o maior partido político da jovem democracia pós-guerra, até o recente partido criado há dois anos pelo premier Berlusconi, PDL ou Popolo della Libertà. A lição da autonomia comunal perpassa na modernidade italiana graças a um debate teórico provocado por intellectuais que visavam o modelo das comunidades camponesas e mercantis da Suiça e dos Estados Unidos das origens: o suíço Sismonde de Sismondi (1773-1842) e os teóricos da época do Risorgimento nacional Carlo Cattaneo e Giuseppe Ferrari. Para esses pensadores o autonomismo federalista produz bom governo e fortalece a virtude e as instituições do republicanismo, ainda contemporâneo dos últimos resquícios do ancien règime. Entre as revoluções européias do aventurado 1848, destacam-se as revoluções italianas dos cinco dias de Milão (“Le cinque giornate di Milano”) e, sobretudo, insiste Ginsborg, os experimentos republicanos e democráticos das repúblicas de Veneza e de Roma, caracterizados pelo sufrágio universal masculino e uma participação política nova que vai na contramão da monarquia e do centralismo estadual. O legado de séculos de autonomia das cidades-estado italianas, combinada com a lição do federalismo de Cattaneo, corrente de pensamento aliás fadada a ficar minoritária e sem êxito, pode ser visto em ação em pleno século XX: no pensamento de Antonio Gramsci com seu jornal “Ordine Nuovo”, no programa político de uma força importante da frente antifascista e dos primeiros anos da república democrática, o Partito d’Azione, até os ideais de democracia direta, dal basso, como dizia-se então, e de autogestão da produção industrial da geração de estudantes e operários de 1968 e além. Cabe  aqui acrescentar que a ótima definição do livro de Zuenir Ventura, 1968: O ano que não terminou, adapta-se perfeitamente ao ’68 italiano. Differentemente dos eventos na França e na Alemanha, no caso italiano fala-se corretamente de “ombra lunga del ‘68”, (sombra longa, extensa de ’68), ou seja, a contraditória, porém extraordinária, vitalidade dos movimentos políticos italiano extende-se a toda a década dos setentas.
Sobre o segundo tema, é bem se lembrar que a Itália, data também a sua especial colocação geográfica, e chamada de “jardim do Império” desde a época medieval, fica ao centro do universalismo do Sacro Romano Império e dos Papas. O mais específico interprete desse universalismo europeu, a Respublica christianorum ou respública dos cristãos, é o imortal poeta e literato Dante Alighieri (1265-1321). Assistimos a uma antiga história de amor entre a península ensolarada e o norte do continente, apesar de um sentimento de superioridade artístico-cultural veiculado pelos humanistas como Francesco Petrarca até o século XV, humanistas que chamavam de “bárbaros” os povos do norte. Mas esses “bárbaros” não deixam de descer ao sul e de visitar esta terra dona de uma especial harmonia entre natura e cultura. O Grand tour de iluministas e românticos, de grandes intelectuais como Goethe, ou dos poetas ingleses Byron e Shelley, coloca de novo a Itália ao centro da nova identidade européia. Enquanto Cavour e Garibaldi atuam como os dois personagens de maior propensão européia, Mazzini e Cattaneo teorizam uma aliança internacionalista entre os “povos da Europa”, e o segundo os “Estados Unidos da Europa”, isto em 1848. Mais uma vez, trata-se de um patrimônio ideal desperdiçado quando as elites italianas e seus governos, em vez de investir em um projeto nacional-democrático, acabam caindo na tentação de imitar a agressividade do imperialismo colonialista de outras nações européias na África oriental e setentrional. Apesar dos ganhos territoriais com a vitória na Primeira guerra mundial, ao custo de 680.000 mortos e 500.000 inválidos, esse evento construi os alicerces do ultranacionalismo, da autocracia fascista e da futura aliança com o hitlerismo. O momento mais alto da contribuição italiana ao europeísmo está no Manifesto do federalismo europeu escrito por dois militantes antifascistas, Altiero Spinelli e Ernesto Rossi, enquanto exilados pelo regime mussoliniano numa pequena ilha do mar Tirreno. O Manifesto de Ventotene inspirou a criação do Movimento Federalista Europeu. Em 1957 os tratados assinados em Roma deram origem à primeira forma do mercado comum europeu. Se o povo italiano foi considerado em pesquisas de opinião entre os mais favoráveis à idéia européia, não foi sempre o mesmo no que diz respeito aos governos italianos, caracterizados por um europeísmo mais de tipo “reativo” do que “ativo”, sugere Ginsborg.
Hoje em dia a Europa é uma realidade de união político-económica de 27 países, mas a construção e o aperfeiçoamento dela são bem longe de ser completos. É só pensar em aspectos paradoxais. Alguns exemplos. Há quinze meses um país pequeno mas importante como a Belgica está sem governo; um país fundador da Europa é refém de uma rixa política infinita entre a parte norte mais rica dos flamengos e a parte sul dos valones de língua francesa. É notícia de algumas semanas atrás que o governo da Grécia, país mais endividado e pobre da União européia, pretende construir um canal aquático longo 120 km., como fronteira para se defender de uma eventual invasão de migrantes ilegais da Turquia, importante país muçulmano e laico, inclusive candidato faz tempo a entrar plenamente na União. Tentações secessionistas, egoísmos políticos vários ainda assolam a dialética social na Itália e na Europa, mas só um federalismo solidário e radicalmente democrático podem construir uma nova entidade supranacional.
Sobre o terceiro tema: a busca pela igualdade. Ao amanhecer de 1861, 150 anos atrás, a jovem nação enfrenta uma série de “questões” ou problema nacionais estruturais. Esses são: a questão romana: a Roma papal é ainda a capital de um estado hostil ao novo Reino da Itália unificada, o estado do Vaticano, protegido pelas tropas francesas; a questão meridional, ou o problema do atraso histórico do sul do país; uma mais geral questão social, ou seja a necessidade de reformar socialmente e politicamente um país amplamente camponês e pelo 80% analfabeto, afetado por profundas desigualdades econômicas e sociais. Movimento decisivo pela entrada da Itália na modernidade das nações européias, o Risorgimento foi um fenômeno protagonizdo por restritas elites políticas, que não sempre estavam interessadas em reformar democraticamente a sociedade inteira. Nas primeiras décadas após 1861, acontecimento praticamente ignorado por longo tempo pela historiografia oficial, o exercito nacional, modelado sobre rígidos esquemas militares piemonteses, respondeu com uma repressão sangrenta a formas de resistência populares e camponesas que buscavam sair da indigência e da dependência da estrutura latifundiária e parasitária da terra. O sul da Itália, mas também outras partes como o Véneto meridional, a Lunigiana toscana na década de oitenta..., tiveram seus próprios “jagunços”, usando um termo bem brasileiro e sertanejo, ou seja, resistentes armados, os briganti, e grevistas anárquicos e socialistas. Cabe aqui lembrar um paralelo evidente entre Itália e Brasil. Os dois países vivem um simétrico final de século reacionário. É desnecessário insistir sobre o valor de cena arquetípica na história do Brasil moderno da resistência e do extermínio do arraial de Canudos no norte da Bahia (5 de outubro de 1897), um acontecimento da força social e simbólica de uma Comuna de Paris em 1871. Semelhantemente, em maio de 1898 eclode na cidade de Milão um protesto popular contra a fome e os impostos. O governo do primeiro ministro Di Rudiní responde enviando o exército do General Bava Beccaris, que usa o fogo dos canhões, deixando no chão cem mortos. Muitos outros exemplos de lutas sociais pela emancipação de inteiras comunidades locais poderíamos enumerar no Brasil e na Itália, entre século XIX e século XX, da Cabanagem paraense à guerra do Contestado paranaense; na Itália o “Biennio rosso” (Biénio vermelho), um movimento de ocupações operárias das usinas e motins nos campos entre 1919 e 1920, e a guerra civil entre setembro 1943 e maio 1945 travada entre os nazistas ocupantes, aliados do exército de Mussolini no centro-norte da Itália, contra a frente democrática da Resistência antifascista. É o espírito da renovação democrática e progressista da Resistência a entrar na nova carta constitucional da República Italiana, aprovada em 1946.
Mas a busca pela igualdade, sendo um projeto aberto e incerto, evidencia na história italiana um constante caráter de oposição entre “país  real” e “país legal” ou oficial, com uma perigosa tendência, hoje em dia, a graves conflitos de interesses econômicos, e à formação de grupos político-financeiros absolutamente contrários ao  bem comum republicano e à “democracia progressiva” anunciada na Constituição. Uma antiga opinião roda nos livros de historiadores e cientista políticos. Trata-se da tese do teórico da “Revolução Liberal” Piero Gobetti (1901-1926), segundo a qual o fascismo não representava um parêntese passageiro da história nacional, como pensava outro influente filósofo, Benedetto Croce, porém uma “autobiografia da nação”. Ou seja, o nacionalismo exasperado junto ao autoritarismo classista e reacionário pareciam a Gobetti um elemento invariável da história nacional, um fio negro da sua identidade. Até hoje, não deixam de fazer refletir as palavras de um dos maiores filósofos da política do século XX, Norberto Bobbio, amplamente estudado nesse país, que, numa entrevista ao diário La Stampa em 1994, dizia: “Eu me pergunto frequentemente se o berlusconismo não seja uma espécie de autobiografia da nação”. Concluindo sobre o tema da busca pela igualdade, acho a italiana uma cultura que protagoniza extraordinariamente ao longo de séculos um discurso de urgência filosófica, uma atenção à imanência e ao engajamento político, começando com Dante político até Maquiavel, Vico e Gramsci. Esta mesma cultura porém, sugere o historiador do “caráter” dos italianos Giulio Bollati, parece basear-se também sobre uma “combinação, com taxa mínima de modernidade” de conservação e inovação. Bollati nos convida a refletir sobre a “relação de distinção histórica, e ao mesmo tempo de cumplice solidaridade, entre tradição e inovação, o que é a constante da moderna história italiana”.
O quarto elemento apontado pelo historiador anglo-florentino Ginsborg é a mitezza, ou suavidade, como virtude social. Da civilização da antiga Roma, não conhecemos somente a força militar, a justeza do direito romano ou a personalidade forte dos grandes comandantes, todos elementos que foram retomados e exaltados por Maquiavel. Existe um outro vertente da cultura romana clássica que corresponde à pietas. Mas, apesar da fácil associação com a virtude cristã, o sentido original dessa palavra coloca-se em um âmbito pré-cristão. A pietas romana tem o duplo valor semântico de religião da família e dos antepassados (lares et penates), e de religião da pátria. O típico representante dessa religião civil e laica é o pius Aeneas da Enéida virgiliana. Após a destruição de Troia, Enéas se torna também um refugiado, um migrante, um xénos, segundo os gregos, ou seja, um estrangeiro. Na sociedade grego-romana do Mediterrâneo antigo o estrangeiro tem um status à parte. Merece um tratamento e um respeito especial como ser humano que veio de fora, de longe. Em 1994 um ensaio do Bobbio, Elogio della mitezza, atualizava sobre a suavidade: “O homem suave é o homem do qual o outro precisa para vencer o mal dentro de si”. Virtude “a mais impolítica entre todas”, segundo o filósofo torinês, a suavidade social não representa um simples e abstrato “buonismo”, se diz na Itália, um exercício limitado de boas intenções ou de political correctness. Ginsborg parece ir além Bobbio, associando mitezza a fermezza (firmeza), e, resgatando o termo grego praòtes das fontes Evangélio de Mateus e dos Sermões de João Crisóstomo, enfatiza o sentido de mudança social, de força voltada a persuadir um inimigo violento a não praticar um crime. Ginsborg nos lembra do impacto inovador das teorias jurídicas de um Cesare Beccaria e do seu tratado de 1764 Dos delitos e das penas, apontando o Grão-Ducado da Toscana como o primeiro estado do mundo a abolir a pena capital em 1786, e terminando com uma lista de heróis românticos do Risorgimento, e alternativos ao tipo romântico “luciferino” à la Byron, como Santorre di Santarosa, os irmãos Bandiera, Pisacane e o mesmo Garibaldi, todos exemplos de ternura e de determinação generosa, necessárias “para dar novo fundamento à política”. Impressiona a generosidade e o idealismo de um Carlo Pisacane, uma espécie de Che Guevara ante litteram, massacrado em 1857 por camponeses napolitanos, que ele pretendia libertar do atraso e do despotismo monárquico.
Existe uma suavidade brasileira como virtude social? Vem de imediato à toa o “homem cordial” brasileiro, conceito inventado pelo poeta modernista e penumbrista Ribeiro Couto, o qual deve ser entendido na sua complexidade, no bem e no mal: o brasileiro, contrário ao comportamento formal e convencional, seria ao mesmo tempo levado à permissividade, à agressividade e à violência. Na verdade, a cordialidade brasileira está mais a vontade com o conceito de “luso-tropicalismo” teorizado pelo mestre do Recife Gilberto Freire, e menos com a visão de um outro mestre, o weberiano Sérgio Buarque de Holanda, que a aceitava mas com muitas ressalvas. E, de toda forma, para Sérgio Buarque o comportamento cordial pertence à “esfera do íntimo, do familiar, do privado”, não do social. Do lado italiano, todo mundo está familiarizado com a expressão estereotípica “italiani brava gente” ou, como dizem os brasileiros, “buona gente”. Foi a propaganda do fascismo mussoliniano a divulgar esta invenção de um caráter italiano eternamente bom e de congênita humanidade, para disfarçar a belicosidade das conquistas coloniais, a violência contra os adversários políticos e o autoritarismo administrado em todo momento da vida pública e privada.
Na verdade, está mais do que na hora para italianos e brasileiros juntos de entregar à la poubelle de l’histoire os vários estereótipos nacionais que ainda circulam na cultura e na comunicação popular. O mais freqüente de todos seria a equiparação entre o “jeitinho” brasileiro e “l’arte di arrangiarsi” dos italianos. Mas, como estamos na Amazônia oriental, gosteria de concluir com uma metáfora que tem a ver com a natureza vegetal. Alguns anos atrás, me impressionou a leitura do ensaio de um classicista, professor na Universidade de Siena, Maurizio Bettini, e com título polêmico: “Contro le radici”. Na verdade é fácil constatar uma retórica de tipo biologístico, quando o assunto é a tradição cultural e a identidade de um povo: raízes, terra, árvores genealógicas, sangue... Típico o princípio dos nazistas Blute und Erde (sangue e solo, sangue e terra), que inspirou a política de extermínio de povos considerados não arianos. Só que analizando, comparando os vários tipos de “memória coletiva”, ou interna, fortemente ligada a determinados grupos e a seus quadros sociais, e a “memória histórica”, ou externa, que é independente de tudo isso e que aliás elabora livremente “as histórias parciais” (Halbwachs) em circulação, descobrimos o caráter de construção e de reconstrução da tradição com que os vários grupos organizam a sociedade, adaptando-se às mudadas condições temporais e sociais. A invenção de uma tradição mais ou menos rígida e supostamente única, original, (mito a ser desconstruído com a ajuda de um Nietzsche: o mito das origens e de um fundamento [Grund] incontestável), nos faz pensar em raízes de tipo vertical, embora na natureza existam também as de tipo horizontal. “Metáforas horizontais da tradição teriam a vantagem de nos ensinar que pode-se muito bem pertencer a uma determinada tradição, porém sem nos sentirmos prisioneiros” (Bettini).
Sou contra uma identidade feita de raízes verticais que me confirmam na complacência do olhar para o meu próprio umbigo, que nunca me fazem encontrar o outro ou o vizinho ao meu lado, na horizontalidade da descoberta plena da existência e na abertura da paisagem, quando a floresta finalmente termina, e os raios do sol penetram no aberto, querendo usar uma famosa metáfora silvestre do filósofo Heidegger (Lichtung, clareira). Companheiros do mesmo caminho horizontal, superando todo provincianismo mortificante, nós somos um diálogo.
 
BIBLIOGRAFIA:
NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. 7 voll. Paris: Gallimard, 1984-.
GINSBORG, Paul. Salviamo l’Italia. Torino: Einaudi, 2010.
BUARQUE DE HOLLANDA, Sérgio. “O homen cordial”. In Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
DEL BOCA, Angelo. Italiani brava gente? Vicenza: Neri Pozza, 2005.
BOBBIO, Norberto. Elogio della mitezza e altri scritti morali. Milano: Linea d’ombra, 1994.
BOLLATI, Giulio. L’italiano. Il carattere nazionale come storia e come invenzione. Torino: Einaudi, 1983.
BETTINI, Maurizio. “Contro le radici. Tradizione, identità, memoria”. In il Mulino, n. 393, anno L, gennaio-febbraio 2001. Bologna
HALBWACHS, Maurice. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1952. La memoria collettiva. Trad. Ital. A cura di P. Jedlowski. Postfazione di L. Passerini. Milano: Unicopli, 1987.

domingo, 5 de junho de 2011

UM TEXTO ATUAL

UM TEXTO ATUAL
Benedicto Monteiro
Como não existe mais uma diferenciação nítida entre os gêneros literários, não sei como classificar o texto de Flávio Nassar. Em época de televisão pode-se dar a ele o nome de escript. Serve para montar uma novela, uma minissérie, uma peça de teatro ou um roteiro de cinema. Também pode-se tirar dele um programa de eventos. Pois evento, é uma palavra que substitui sofisticadamente o termo de acontecimentos. O evento pode ser tudo o que aconteceu ou ainda vai acontecer.
Como o autor mesmo diz no seu prefácio, a inspiração surgiu em razão do manuseio do computador. Já é um produto influenciado pela tecnologia da informática. Por isso, o próprio autor me obriga a classifica-lo como um gênero da nova escrita. Acho que Flávio Nassar produziu um rico e excelente hipertexto. Para quem não sabe, hipertexto, é uma nova forma de se escrever para divulgação na internet.
As obras literárias escritas de forma convencional, para serem lidas na internet, ocupariam um espaço e um tempo incompatíveis com a pressa da modernidade. Daí o surgimento do hipertexto. Escritos de forma que o texto básico do ensaio, do conto ou do romance, tenham links capazes de esclarecer ou aprofundar a matéria nos seus mais importantes detalhes. Basta clicar no link que aparece, na tela, todos os dados ou detalhes, da figura, da pessoa ou do fato que faz parte da escrita.
Aliás, esse assunto da televisão concorrendo com a escrita, já é um debate que se trava na Europa, entre os intelectuais e os responsáveis pelas indústrias gráficas. A televisão, como todo mundo sabe, tem meios que passam a informar melhor e mais rapidamente os telespectadores, que as obras escritas. As imagens, a fala, a música, os efeitos especiais, dão ao telespectador comum, melhores entendimentos dos fatos e das emoções, que as páginas escritas num conto ou num romance.
Nem sempre o cinema e a televisão conseguem transferir para as telas, com fidelidade, as verdadeiras obras literárias. Mas o hipertexto, é justamente para atender os milhões de pessoas que, por qualquer razão ou motivo, não conseguem ler os livros. Pois bem, Flávio Nassar, mesmo escrevendo bem, descobrindo e reescrevendo histórias e personagens, que já passaram em Belém, nos dá agora e em livro, esse manancial que representa mais essa fonte de criação.
Creio que o autor já tem armazenado, o material para todos os links que o livro oferece. Se não fosse uma obra da época do computador, poderia dizer que ele já deveria ter publicado, no próprio livro, um importante glossário, para o leitor que não conheça ou não se lembre da história do Pará e da vida de seus personagens mais característicos ou mais importantes.
Abarcar a rica história de Belém nesses quatro séculos, num livro que não chega a cem páginas, é urna tarefa que só pode ser feita com muita criatividade e utilizando elementos que são oferecidos pela tecnologia que está instituindo uma nova economia e um novo comportamento para toda a humanidade.
Embora eu já tenha escrito os meus contos e romances desde 1970, em forma de hipertexto, Flávio Nassar oferece ao público leitor, o próprio hipertexto, que pode ser desdobrado em muitos links, capazes de informar e de emocionar os leitores mais exigentes.
Agora, só tenho que agradecer a minha inclusão ao lado do meu personagem Cabra da Peste no texto. Esta é unta prova que ainda estamos vivos. E é também urna demonstração de como o hipertexto é capaz de incluir nas suas linhas, não só as pessoas mortas ou vivas, mas até aquelas que foram apenas inventadas em contos ou romances.

Caleidoscópio dentro de caleidoscópios

Caleidoscópio dentro de caleidoscópios
José Arthur Bogéa
O título é longo e inusitado – O Armagedon na Cidade do Pará e a polêmica ressurreição do EngoleCobra — mas, só isso não explica o relativo silêncio sobre o livro de Flávio Sidrim Nassar [1952] publicado no primeiro ano deste novo milênio. Talvez, porque Belém, Narcíso às avessas, não gosta de se olhar no espelho. O Autor revisita a história, a cultura e o imaginário desta Santa Maria de Belém que os registros mais antigos tratam como Cidade do Pará. Armagedon [como passo a abreviar] é resgate e desmistificação.
O livro de Nassar pode ser considerado uma versão pós-pós-Moderna do Compêndio das Eras da Província do Pará [1829] de Antônio Ladislau Monteiro Baena [1782-1850] título poético para a precisa narração dos fatos históricos. Ambos têm como ator o Tempo, nos conceitos de Heráclito [ c. 540 a.C- 480 a.C] a Heidegger [1889-1976] e, por que não, à Oração ao Tempo, de Caetano Veloso [1942].
As figuras históricas, citadas nos dois livros, são simples atuantes. Paralela ao tempo/ser a evolução da linguagem. Nassar arisca uma “variante dialetal do Português que, possivelmente, se falará no mercado do Ver-o-Peso por volta de 2016” [2001:10] exatos quatrocentos anos da fundação da Cidade. O Autor traduz, assim, as mensagens para o “português hodierno”, expressão que se insere no arco do tempo, onde futuro e passado se encontram e geram o inalterável.
O “Livro Uníco” de Baena começa em 1615, “Que compreende os Fastos da Gente Luzitana desde que Francisco Caldeira de Castello Branco lançou os cimentos da Provincia do Pará até que esta adherio aõ Systhema Brazílico” [1969:21]. Nassar se atém aos “sinais dos tempos”: “- Não há dúvida, o ano de 1616, quando foi fundada Belém, foi aziago, foi também, o ano da morte de Shakespeare e Cervantes” [2001:89]. O primeiro vai até 1823, quando do “Regresso do Throno para o berço da Monarchia” - “Finis” [1969:387] e o segundo “No princípio do fim – finnicius – (quando) o arcanjo soou a trombeta do Apocalipse” [2001:15].
Enquanto no Armagedon um computador “de vez em quando pega um santo eletromagnético, e ‘recebe’ e-mails de procedência desconhecida” [2001:9], Baena se refere a uma “laborioza fadiga” [1969:15], além, é claro, do contraste entre o “hieróglifo digital” [2001:9] do ficcionista e o “traço da pena” [1969:17] do historiador. Se o primeiro revela que “mesmo em português (o texto) continua nebuloso” [2001:9], a preocupação do segundo é ir além da “fadiga apographa” [1969:15].  Aproximações e distanciamentos entre os dois autores, reforçam a característica única da Literatura Amazônica, o embricamento da ficção com a história.
Há aproximações e contrastes entre os dois autores. Enquanto Nassar, na nota prévia, se apresenta apenas como um “transcodificador” [2001:12] Baena, na folha de rosto enumera títulos e honrarias: “Moço Fidalgo da Imperial Casa, Cavaleiro da Ordem Militar de São Bento de Aviz, Sargento Mor e Commandante que foi do Corpo de Artilheria de Linha da referida Província, e Professor de sua Escola Militar &tc”.
Nos dois aparece a figura do “atravessador”. O próprio Baena faz a travessia entre os fatos vividos e os fatos contados. Nassar passa a tarefa a um “anônímo” (que) “se identifica como um atravessador de Backu” [pg.12]. O Backu é a grande metáfora do Armagedon: “grafia futura do bacu, peixe [...] comum aos rios amazônicos, cujo nome se origina da palavra tupi Ba’ku [...] conhecido pela avidez com que devora dejetos” [p.11] — se a narrativa vem do futuro para o passado, este passado se firma no presente resumido nesta única palavra.
O Armagedon de Nassar assume as características de um reality show. A ambiguidade da escritura permite diferentes leituras, como a afirmativa pela negativa: “A municipalização do Juízo Final se tornou possível graças à onipresença, atributo que possibilita Deus estar presente em todos os lugares ao mesmo tempo” [p.15]; ou, a leitura da negativa pela afirmativa: “Dom Alberto não faria uma patacoada dessas!” [p.20]
Esta ambivalência talvez seja a característica mais marcante do Armagedon, fixada na dualidade de imagens de “Nossa Senhora de Nazaré: a achada e a do Círio” [p.18]. Quando não, o próprio objeto da narrativa é colocado através de visões antagônicas, como a escolha do Edifício Manuel Pinto da Silva como sede do juízo final. Reduplicação do conceito de Lacan de que é o outro que me determina.
A leitura tem um lado avesso que é revelador. Quando Belém é escolhida para sediar a “experiência—piloto” do Armagedon, com o argumento de que “a cúpula celeste estava interessada em ter uma noção da maneira como em uma cidade equatorial haviam florescido as virtudes cristãs” [p.17], Nassar remete à matriz do “Não existe pecado ao Sul do Equador”. E, são estas citações in/diretas e a riqueza das intertextualidades que fazem uma escritura particular.
Os atuantes de Nassar aparecem em suas formas e atributos, como “Francisco Caldeira, o fundador [...] Landi, que ergueu altares e palácios. Ou Plácido, também ele o fundador da Belém mítica e virtual [...] Lemos, o modernizador [...] o EngoleCobra [EnC] um flanêur que vagueava pela cidade” [p.17]. Surgem também através do simulacro, como Frei Caetano Brandão que “preferiu comparecer na forma de sua estátua do Largo da Sé, pois era mais baixo, mais barrigudo, mais feio que o bronze que o imortalizara” [p.19].
Há outros nomeados diretamente, como o maestro Waldemar Henrique, por aproximação de sonoridade como o poeta Mário Virgino, ou por um código particular através de um jogo de palavras D’Ellas, ou ainda, bem dentro da característica do roman à clef revelados por codinome, geralmente ridicularizante como monsenhor Voando Penas — as figuras eclesiásticas parecem o alvo preferido das investidas do Autor.
O universo do Armagedon é um espaço predominantemente masculino, como nos livros de História. As mulheres ocupam um lugar, secundário, à parte. Nossa Senhora de Nazaré fala inglês: “Heres Comes Everybody” [p.123] - as metáforas do Hino à Virgem [citadas no con/texto] justifícam o emprego do verbo inglês no sentido denotativo e conotativo. Só a ficção pode juntar um trio impensável: Mara, Fafá, Leila, em cantoria à Padroeira. Dona Leopoldina é apresentada apenas como urna “fazendeira do Marajó”, e as anônimas “mulheres de calcinhas novas” [p.35] — fetiche? — se juntam aos grupos de vaqueiros e estivadores do cais do porto.
Impossível passear pelas páginas do livro, sem se ater à apresentação gráfica — um exemplo de que não se pode separar forma e conteúdo. O Autor joga com palavras e ícones, além de um percurso pelas diferentes escolas literárias, o leitor também se depara com a evolução da escrita, itálicos para códices, textos ‘dactilographados’ e a ultramodernidade do computador. Além da fina ironia — nunca o deboche — que perpassa a narrativa há o prazer de uma leitura 1údica.
O exercício de apreensão do texto múltiplo e, como o próprio Autor determina, invade outros campos da cultura, além da história: “Todos eram uma alegoria, um samba enredo, um filme, uma história ou uma pintura Cubista, que se vê ao mesmo tempo de frente, de costa [sic], de cima, de baixo” [p.111] — no original as vírgulas são substituídas por ícones, traduzido como “Caleidoscópio dentro de caleidoscópios” [p.105].
Nassar, com o Armagedon, pode ainda ser apontado como o sucessor da escritura de Felippe Patroni [1789-1866] o real introdutor do Modernismo na Literatura da Amazônia, nos idos dos oitocentos. Uma referência maior que Baena, no campo da Literatura, porque ambos utilizam o que se convenciona chamar de leitura do estranhamento.
Publicado em O Liberal, caderno Cartaz de 6/07/2003